Mães que abandonam seus filhos e as chagas de Obaluaiê

Keith Haring, Sem título, 1993, tinta, 84 x 84

Conta-se na mitologia yorubá que Obaluaiê (orixá das curas) nasceu repleto de pústulas, e, por isso, sua mãe Nanã teria abandonado o recém-nascido a própria sorte numa floresta. O bebê-orixá entretanto, foi encontrado por Iemanjá, que cuidou das feridas e criou o menino, até que ele atingisse idade suficiente para seguir seus próprios desígnios.

Hoje faz uma semana que os veículos de comunicação mostraram as cenas gravadas por uma câmera de segurança em que uma mulher caminha até uma caçamba de entulho e lá deixa um embrulho. O pacote, descoberto por um catador de lixo, continha um bebê de poucos dias de vida. Essa não é a primeira história de abandono de filhos recém-nascidos realizados pelas mães, a exemplo da lenda narrada.

Compartilho outra, nem atual, nem mitológica. Numa tarde qualquer por volta do 1900, um grupo de crianças que saia do colégio nas imediações da Avenida Paulista, avistou uma caixa de papelão que se mexia. Ao aproximarem-se descobriram o frágil corpinho de um bebê. Nos autos policias que se lavraram a partir do falecimento do minúsculo ser, ficou registrado que a vítima era da cor parda. A partir desse fato, algumas pessoas apresentaram-se para testemunhar: tinham categoricamente avistado uma mulher de cor escura largar um pacote na avenida. A comoção popular chegou aos jornais, e esperava-se arduamente pela punição daquela que, tendo o privilégio de parir, não era digna o bastante para manter sua cria. Foram enviados destacamentos aos hospitais da região, e toda mulher negra ou parda que procurasse por socorro clínico devia ser avaliada, para que se houvesse a certeza de que seus problemas não eram oriundos do infortúnio que gerou a morte do rebento abandonado. Não conseguiram, alhures, encontrá-la.

Quando ouvi pela primeira vez a história de Obaluaiê, abandonado pela mãe, coberto de chagas, obviamente me compadeci do indefeso. A senhora de idade que me narrou a lenda, entretanto, emendou sem pestanejar: na minha crença não julgamos as mães que abandonam seus filhos, elas tiveram seus motivos.

Penso que há um motivo para que uma história de abandono de incapaz seja parte constituinte de um mito ligado às raízes da cultura brasileira. É assustador realmente pensar que uma mãe, ao acabar de parir, tenha abandonado o seu filho. Mas é ainda mais aterrorizante pensar nos descaminhos que a levaram a tal “opção”. Como é possível pensarmos em termos de julgamento, e ainda de prévia condenação, sem questionar o que historicamente faz com que essa mácula se repita acintosamente?

Parece que tudo que envolve a vida de um ser indefeso torna-se sagrado, e , de fato, o direito a vida deve ser assim considerado. Mas, será que nessa áurea que envolve o ser puro não deveria estar inclusa também a mãe, como parte indissociável da criação? Porque, que quando a sociedade passa a discutir a crueldade do abandono não chega a óbvia conclusão de que as políticas públicas de saúde exigem revisão urgente para que esta história não se repita? Será que é cruel também discutir o aborto frente à vida que luta numa caçamba? Parece insuportavelmente óbvio que os direitos reprodutivos da mulher perpassam diversas questões tantas vezes já abordadas, mas sempre tratadas por um raso moralismo. Entre a compaixão pelo recém-nascido abandonado e a imputação da monstruosidade à mãe, o que está mais evidente é o total desamparo de uma mulher frente a uma gravidez indesejada.

Há ainda que se considerar que um outro mito acompanha esta discussão. Aquele em que apenas a mulher é responsável pelo recém nascido. Como que para cumprir uma função “anti-machismo” e calar comentários óbvios demais, a principal matéria jornalística sobre o assunto informa: o pai da bebê, que trabalha no mesmo local que a mãenão tinha sido encontrado pela reportagem. Mas quem realmente o procurou? Antes do abandono na caçamba, houve o abandono de uma grávida com seis filhos. Isso é menos cruel? Que régua nós, cidadãos, usamos para medir tais eventos?

Na mesma matéria sobre o caso da Praia Grande há um “entusiasmo de Salém” pela mãe ter sido encontrada. A mulher afirma que não pode criar mais um filho, porque é mãe de outros seis, e que para sustentá-los ganha salário de R$600. A reportagem alardeia que apenas três desses filhos são menores de idade, mas não nos informa sobre quantos dependem dessa parca renda.

O advogado da mãe afirma que ela está com depressão pós-parto e arrependida. Fica um certo clima de que a “depressão pós-parto” seria uma desculpa esfarrapada para um ato de crueldade premeditado. Mas que mulher no mundo escolheria ter um filho pelo prazer de abandoná-lo? É a mesma discussão de outrora: nenhuma mulher deseja abortar um filho, nem abandoná-lo. Por mais insana que ela seja, isso não é uma escolha. Entretanto, todas as mulheres são constitucionalmente obrigadas a levar adiante uma gravidez indesejada, correndo o risco inclusive de padecer de outros males, como o tormento de se ver só e sem condições de criar um bebê.

As chagas das crianças brasileiras são mais profundas que a caçamba da Praia Grande. Obaluaiê se fez homem e orixá, segundo tal cultura, e traz consolo para os pobres filhos abandonados, mostrando uma história de superação. Mas por ora, temos que superar a insistência em demonizar mulheres alijadas de autonomia sobre seu corpo e que sofrem ausência de direitos.

Lívia Tiede

20 Respostas para “Mães que abandonam seus filhos e as chagas de Obaluaiê

  1. No período imperial existiam as “rodas”, onde as mães poderiam deixar os filhos, tocar o sino e ir embora.

  2. Excelente a reflexão, Lívia! Lúcida, envolvente e, ao mesmo tempo em que se mostra consciente da realidade da situação da mulher no(s) mundo(s), ainda se desenvolve em seu plano simbólico! A mitologia nada mais é do que isso, uma maneira de nos entendermos sob a ótica do fantástico!

  3. Ótimo texto Livia, lúcido, racional mas sem perder a emoção. Muito bom mesmo!

  4. em minha opinião esse texto deveria ser impresso e panfletado! nada mais justo q chocar o descontrole da burrice q impera nesse pais a muitos anos com um poco de razão e raciocínio logico. enquanto a emoção barata impera nas telenovelas e o falso moralismo católico eh o bom senso vigente nao só televisionado como repassado nao só boca a boca como vivido diariamente .
    imprime esse texto Lúcia espalhe ele nas ruas!?

  5. Livia ! ! ! espalhe ele nas ruas vc tambem : )

  6. lindo texto! e ele me causou frases: se história é processo, árvore genealógica é um encadeamento concatenadamente imbricado de histórias familiares. Muito lindamente você narra e argumenta o abandono de famílias inteiras pelo subdesenvolvimento das idéias dos homens. é fato: mãe que abandona filho foi abandonada muito antes, pela própria mãe, pela saúde, pela educação, pela cultura…. adorei o texto!

  7. Obrigada pelos comentários. Acabei de ver que mais um bebê foi abandonado num hospital particular em Jundiai.

  8. adorei o texto, Lívia! uma reflexão importante e muito necessária… não podemos deixar que se lancem as pedras inconsequentemente sobre uma única “culpada” cada vez que isso acontece (pq não foi a primeira e nem será a última) sem discutir as questões de distribuição de renda, aborto, saúde pública, família, maternidade e paternidade, etc…

  9. Lívia, muito boa esse “link” de tragédias atuais com a mitologia iorubá! Acho que ainda poderia haver um gancho com o tema adoção, sentiria a maternidade sendo abordada de forma c0mpleta.
    Parabéns pelo seu texto!

  10. Parabéns, Lívia, e para não copiar os adjetivos dados ao seu texto por outros leitores – com os quais concordo, claro – cito um clichê querido, à guisa de elogio: “hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás”.
    Concordo tb que seu artigo precisa de mais divulgação, pode ser ferramenta política muito útil.
    LEGALIZAÇÃO DO ABORTO JÁ!

  11. Acho que voltamos várias casas quando o assunto é mulher e maternidade na grande mídia. Um revivial de preconceitos, de estigmas… novelas emplacando o tema aborto com o que há de pior no preconceito… jornais narrando as notícias de mães que abandonam bebês, programas toscos sobre maternidade (para mães ricas e “modernas”). E o seu texto foi excelente – e fino (rs) – nesse ponto: que horas vamos colocar à baila esses assuntos, na nossa agenda pública?? Adorei, Li! bjão

  12. O dia das mães se aproxima, e, apesar do fator comercial da data, o seu texto é um presente que nos foi dado independente de ser ou não ser mãe. São finas letras que gritam e choram em busca da liberdade para as almas femininas/masculinas, e, que ao mirar o outro encontram eco em si próprios.

  13. Boa analise

  14. Pingback: Lívia Tiede: Mães que abandonam os filhos | Viomundo - O que você não vê na mídia

  15. Parabéns pelo texto.
    Isso me faz lembrar uma frase que infelizmente perdi o nome da autora:
    “Se os homens engravidassem, o aborto seria um sacramento.”
    Sugiro a todas nós que queremos nos aprofundar no tema do direito ao decidir de usamos a expressão IVG _ Interrupçlão Voluntária da Gravides, como acontece na França, IVG _ Interruption volontaire de grossesse.

  16. Desculpem os erros, não corrigi a tempo.

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  18. Olá, tenho “quase” 17 anos e conheci o blog por indicação de uma professora. Adorei os textos, gosto de blog cabeça 🙂 eu tenho um cujo link já está aí. Parabéns pelo trabalho aqui.

  19. Uau! Texto excelente!

  20. Pingback: Mães que abandonam seus filhos e as chagas de Obaluaiê – A Tal da Politica

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